sábado, 10 de fevereiro de 2024

23 - "O Príncipe" e a política

 Aula 23 - "O Príncipe" e a política


Quando falamos de política em filosofia, precisamos fugir do sentido aplicado pelo senso comum. O termo política é derivado do grego antigo πολιτεία (politeía), que indicava todos os procedimentos relativos à pólis, ou cidade-Estado. Por extensão, poderia significar tanto cidade-Estado quanto sociedade, comunidade, coletividade e outras definições referentes à vida urbana.

O período moderno traz consigo a figura marcante de um dos maiores filósofos políticos conhecidos: Nicolau Maquiavel.


Nascido em Florença, em 1469, Maquiavel sempre teve aspirações políticas, consumadas por volta de seus 29 anos ao tornar-se secretário do governo republicano de Florença, chefiando assim, várias missões diplomáticas.




Nicolau Maquiavel



Isso só foi possível com a tomada de Florença pela família Bórgia, que destituiu do poder os Médici.


No entanto, os Médici, apoiados pelo Papa Júlio II, retomam o comando de Florença e de algumas cidades-estado vizinhas.


Maquiavel lidera, em uma vã tentativa, a resistência contra a família Médici. Preso, é torturado e exilado em San Casciano.


Através de sua tentativa de reconciliação com a família Médici, Maquiavel nos brinda com seu clássico O Príncipe.


Maquiavel entende que a grande dificuldade naquele momento não era a tomada de poder, e sim, a sua manutenção.


Dessa forma, ao escrever O Príncipe, instrui o governante como, diante de uma Itália dividida em vários principados - sem contar os Estados do Papa - chegaria ao poder, como o exerceria e o mais importante, como o conservaria.


Maquiavel traz um novo paradigma de legitimação de poder. Sua abordagem remete ao domínio através da força.


A teoria política de Maquiavel rompe com as antigas descrições de Estado perfeito que se inspiravam apenas no "como deve ser", sem levar em conto "como é'".


Para alcançar tal propósito, o príncipe deve zelar por três princípios básicos: a tomada do poder, a garantia da estabilidade política e a construção da República unificada.


A personificação desse governante era visto por Maquiavel em Lourenço de Médici, um homem impiedoso, frio, astuto, disposto a controlar a instabilidade política vigente e a perversidade humana na instauração da cidade justa.


Para entender um pouco mais sobre O Príncipe e Ma-quiavel, leia o trecho abaixo:


"Dos que chegaram ao principado por atos criminosos


(...)


Recentemente, durante o reinado de Alexandre VI, Live-rotto de Fermo, tendo ficado órfão de pai em tenra idade, foi criado na casa de um tio materno chamado Giovanni Fogliani. Nos primeiros tempos de sua juventude, ingressou no exército de Paolo Vitelli a fim de que, afeito aquela disciplina, alcançasse algum posto elevado na milícia. Morto Paolo, ficou Liverotto sob o comando de Vitelozzo, irmão de Paolo, e em pouquíssimo tempo, por ser engenhoso, forte e valoroso, tornou-se o principal homem de sua tropa. Parecendo-lhe, porém, coisa servil estar sob ordens de outro, pensou em ocupar Fermo, contando com a ajuda de alguns cidadãos, que preteriam a servidão à liberdade de sua pátria. E também com o favor de Vitelozzo. Escreveu a Giovanni Fogliani dizendo que, como havia estado muitos anos fora de casa, queria revê-lo, visitar sua cidade e cuidar do seu patrimônio. Já que havia lutado pelo único motivo de conquistar honra, queria que seus concidadãos vissem que ele não passara o tempo em vão e desejava chegar pomposamente, acompanhado de cem cavaleiros, entre amigos e servidores. Rogava-lhe a gentileza de providenciar que os habitantes de Fermo os recebessem solenemente, o que não somente honraria a ele - Liverotto - como tambem ao próprio Giovanni, uma vez que fora seu discípulo. Giovanni não deixou, portanto, de atender ao sobrinho em todos os pontos: fez com que ele fosse recebido com todas as honrarias em Fermo e o alojou em sua própria casa. Passados alguns dias, enquanto Liverotto se empenhava em providenciar secretamente tudo que era necessário a seu futuro crime, convidou solenemente Giovanni Fogliani e todos os homens mais importantes de Fermo para um banquete muito solene. Consumidas as iguarias e terminados todos os demais entretenimentos de praxe, Liverotto, de caso pensado, pôs-se a discutir certos assuntos graves, falando da grandeza  do papa Alexandre e de Cesare, seu filho, assim como de Suas campanhas. Quando Giovanni e outros responderam, ele subitamente se ergueu, dizendo que aquilo era assunto para se falar em um lugar mais reservado, e retirou-se para um quarto, sendo seguido por Giovanni e pelos demais. Mal se haviam sentado, saíram de um esconderijo alguns soldados que assassinaram Giovanni e todos os outros. Depois do homicídio, Liverotto montou a cavalo e percorreu a cidade. Atacou o supremo magistrado no palácio de tal forma que, com medo, foi ele forçado a obedecê-lo e a nomeá-lo príncipe. Depois de assassinar todos os que, por estarem descontentes, poderiam atacá-lo, consolidou-se com novas leis civis e milita-res, de modo que, ao fim de um ano, durante o qual manteve o principado, não somente estava seguro na cidade de Fermo, como ainda se tinha tornado temido por todos os vizinhos. Sua derrota teria sido difícil como a de Agátocles, caso não se tivesse deixado enganar por Cesare Borgia, quando este - como disse antes - capturou os Orsini e os Vitelli em Sinigália, onde juntamente com Vitelozzo, que havia sido seu mestre de virtù e malvadezas, foi também preso e estrangulado Liverotto, um ano depois de haver cometido parricídio.


Poderia alguém perguntar-se de que forma Agátocles e outros semelhantes, após infinitas traições e crueldades, puderam viver seguros em sua pátria e defenderem-se dos inimigos externos por longo tempo, sem que jamais seus súditos tivessem conspirado contra eles, enquanto muitos ou-tros, empregando a crueldade, não conseguiram manter seus estados, nem nos tempos de paz, nem nos incertos tempos de guerra. Creio que isto resulta da crueldade mal empregada ou bem empregada. São bem empregadas as crueldades (se é legítimo falar bem do mal) que se fazem de uma só vez pela necessidade de garantir-se e que depois não se insiste mais em fazer, mas rendem o máximo possível de utilidade para os súditos. Mal empregadas são aquelas que, ainda que de início sejam poucas, crescem com o tempo, ao invés de se extinguirem. Aqueles que observam o primeiro modo podem encontrar algum remedio para seu Estado, diante de Deus e dos homens, como aconteceu com Agátocles; os outros, é impossível que se mantenham.


Daí ser preciso sublinhar que, ao tomar um Estado, o conquistador deve examinar todas as ofensas que precisa fazer, para perpetuá-las todas de uma só vez e não ter que renova-las todos os dias. Não as repetindo, pode incutir confiança nos homens e ganhar seu apoio através de benefícios. Quem age de outro modo, por timidez ou mau conselho, precisa estar sempre com a faca na mão, não podendo jamais confiar em seus súditos, como tampouco podem eles confiar no príncipe devido às suas contínuas e renovadas injúrias, As injúrias devem ser feitas conjuntamente a fim de que, sendo menos saboreadas, ofendam menos, enquanto os benefícios devem ser feitos pouco a pouco, para serem mais bem apreciados. E, acima de tudo, deve um príncipe viver com seus súditos de forma que nenhum incidente, mau ou bom, faça variar seu comportamento: porque, vindo as vicissitudes em tempos adversos, não terás tempo para o mal e o bem que fizeres não te será creditado, uma vez que julgarão que o fizeste forçado, e não receberás, então a gratidão de ninguém."


Maquiavel, Nicolau. O príncipe. Martins Fontes. São Paulo: 2004. Cap. VIII. p. 39-41.


1 Um dos mais célebres condottieri de sua época. Era capitão dos florentinos na guerra contra Pisa, e foi condenado em 1499, em Florença, por traição.


2 Fórmula frequente, que significa apenas "em todas as ocasiões".


Exercícios 


01 - Maquiavel rompe com a ética cristã vigente ao defender a adoção de uma moral própria no tratamento dos negócios do Estado.


Caracterize as ideias desenvolvidas por Maquiavel em "O Príncipe".


02 - "O maquiavelismo é uma interpretação de 'O Príncipe', de Maquiavel, em particular a interpretação segundo a qual a ação poética, ou seja, a ação voltada para a conquista e conservação do Estado, é uma ação que não possui um fim próprio de utilidade e não deve ser julgada por um meio de critérios diferentes dos de conveniência e oportunidade".


(BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Emmanuel Kant. Trad. de Alfredo Fait. 3ª ed. Brasília: Editora UNB, 1984, p.14)


Com base no texto e nos conhecimentos sobre o tema, para Maquiavel o poder político é:


a) Independente da moral e da religião, devendo ser conduzido por critérios restritos ao âmbito político;


b) Dependente da religião, devendo ser conduzido por parâmetros ditados pela Igreja;


c) Relacionado à ética, devendo ser orientado por princípios morais válidos universal e necessariamente;


d) Dependente da religião, devendo ser orientado por princípios morais válidos universal e necessariamente;


e) Relacionado à ética, devendo ser conduzido por parâmetros ditados pela Igreja.


03 - "Sendo, portanto, um príncipe obrigado a bem servir-se da natureza da besta, deve dela tirar as qualidades da raposa e do leão, pois este não tem defesa alguma contra os laços, e a raposa, contra os lobos. Precisa, pois ser raposa para conhecer os laços e leão para aterrorizar os lobos. Os que se fizerem unicamente de leões não serão bem-sucedidos. (...) E há de se entender o seguinte: que um príncipe, e especialmente um príncipe novo, não pode observar todas as coisas a que são obrigados os homens considerados bons, sendo freqüentemente forçado, para a religião overno, a agir contra a caridade, aré, a humanidade, a religião'.


(MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979. p. 74-75)


Com base no texto e nos conhecimentos sobre Maquiavel, é correto afirmar:


a) O poder encontra seu fundamento na bondade e na carida-de;


b) A manutenção do poder depende das virtudes oriundas da fé e da religião;


c) A sabedoria e o uso da força fundamentam o poder;


d) A sabedoria é virtude oriunda da fé e da religião e se mostra o único instrumento para o príncipe ser temido pelo povo e manter o poder;


e) Para manter o poder, o príncipe deve agir com caridade, fé e humanidade, conforme manda a religião.


04 - Um dos princípios difundidos por Maquiavel em sua filosofia política é a ideia de:


a) Uma moral laica;


b) Uma moral religiosa;


c) A ausência de uma moral;


d) Uma moral política;


e) Uma moral piedosa.


05 - Para Maquiavel, os interesses do Estado devem ser sempre preservados. Para defender tal ideia, ao príncipe é permitido:


a) A legitimação do uso da força contra aqueles que não se opõe aos interesses estatais;


b) A cobrança de impostos abusivos em benefício do Estado;


c) A suspensão dos direitos civis à menor ameaça aos poderes constituídos;


d) A suspensão de títulos concedidos à nobreza;


e) A legitimação do uso da força contra aqueles que se opõe aos interesses estatais.

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